A importância das normas gerais para o meio ambiente
O Brasil, país detentor de uma biodiversidade extraordinária e dimensões continentais, tem uma enorme responsabilidade com a gestão adequada e sustentável dos seus recursos naturais. Ciente desta preocupação, antes mesmo do advento da Constituição de 1988, normas legais estabelecendo restrições administrativas ao direito de propriedade foram implementadas, visando exatamente resguardar o interesse maior da coletividade o direito difuso da população de conviver num ambiente ecologicamente equilibrado. O Código Florestal, criando as figuras da área de preservação permanente (APP) e da reserva legal (RL), é uma destas normas, cuja importância e observância mostram-se não apenas necessárias, mas essencialmente estratégicas para a garantia de um desenvolvimento equilibrado e sustentável para a nação brasileira.
O conceito legal de APP relaciona tais áreas, independente da cobertura vegetal, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, de proteger o solo e assegurar o bem estar das populações humanas. Como se vê, as APPs não têm apenas a função de preservar a vegetação ou a biodiversidade, mas uma função ambiental muito mais abrangente, voltada, em última instância, a proteger espaços de relevante importância para a conservação da qualidade ambiental, e assim também garantir o bem estar das populações humanas.
Para as nascentes (perenes ou intermitentes) a norma estabelece um raio mínimo de 50 metros no seu entorno independentemente da localização, seja no estado do Amazonas ou em Santa Catarina, seja na pequena ou na grande propriedade, em área rural ou urbana. Tal faixa é o mínimo necessário para garantir a proteção e integridade do local onde nasce à água e para manter a sua quantidade e qualidade. As nascentes, ainda que intermitentes, são absolutamente essenciais para a garantia do sistema hídrico, e a manutenção de sua integridade mostra estreita relação com a proteção conferida pela cobertura vegetal nativa adjacente.
Da mesma forma há faixas diferenciadas para os rios de acordo com a sua largura, iniciando com uma faixa mínima de 30 metros em cada lado da margem para rios com até 10 metros de largura; uma faixa mínima de 50 metros em cada lado da margem para rios entre 10 e 50 metros de largura; uma faixa mínima de 100 metros em cada lado da margem para rios entre 50 e 200 metros de largura; uma faixa mínima de 200 metros em cada lado da margem para rios entre 200 e 600 metros de largura; e, uma faixa mínima de 500 metros em cada lado da margem para rios com mais de 600 metros de largura.
A Reserva Legal (RL), por sua vez, não tem apenas a função de prover o uso sustentável dos recursos naturais na propriedade ou posse rural. Tem também a função de conservar e reabilitar os processos ecológicos, conservar a biodiversidade e servir de abrigo e proteção da fauna e flora nativas. Desta forma, a norma geral de caráter nacional concilia o necessário uso sustentável de recursos naturais para a propriedade ou posse rural, com as funções ambientais e o provimento de serviços ambientais de retenção de água, conservação do solo, manutenção de grupos de polinizadores e fixação de biomassa, entre outros, os quais são importantes e necessários ao cumprimento da função socioambiental dos imóveis ou propriedades rurais.
É necessário destacar que a norma geral de caráter nacional estabelece percentuais diferenciados de Reserva Legal em função da localização, sendo 80% na propriedade ou posse rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal; 35% por cento na propriedade ou posse rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal; 20%, na propriedade ou posse rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa nas demais regiões do país; e, 20% na propriedade ou posse rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do país.
De acordo com o jurista e atual Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Dr. Antonio Hermann Benjamim a Área de Preservação Permanente (APP) “como sua própria denominação demonstra – é área de “preservação” e não de “conservação” -, não permite exploração econômica direta (madeireira, agricultura ou pecuária), mesmo que com manejo”.
Mesmo assim alguns usos e intervenções em APPs são admitidos pela norma geral de caráter nacional em casos de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental. Já a Reserva Legal admite o uso econômico sustentável, através do regime de manejo sustentável, sem permitir a supressão total da vegetação. Para a Reserva Legal, estão previstas no Código Florestal, diferentes alternativas para recuperação ou compensação nos casos daqueles imóveis que não possuem mais cobertura vegetal nos percentuais determinados.
Prevê também as hipóteses em que a RL pode ser total ou parcialmente sobreposta à APP e, no caso da Amazônia a hipótese de redução da RL de 80% para 50% pelo Zoneamento Ecológico Econômico. Ou seja, tratam-se de dois instrumentos complementares (APP e RL) os quais são de fundamental importância, sendo, portanto, de interesse público e estratégico para as políticas nacionais de proteção dos recursos hídricos, da biodiversidade, da mitigação dos efeitos das mudanças climáticas e para a garantia do bem estar das populações humanas.
Estas considerações iniciais são necessárias para qualificar a discussão a respeito de teses que consideram que os parâmetros de APPs e RL deveriam ser estaduais ou até definidas no caso-a-caso. Há inclusive quem defenda que a definição das faixas e parâmetros de Áreas de Preservação Permanente (APPs) deva ser feita caso-a-caso, levando em conta aspectos de textura e permeabilidade do solo, declividade do relevo, tipo de vegetação etc.
O que estas pessoas não explicitam são os “interesses” que as movem a defender essa fórmula. A despeito de alguns idealistas que ingenuamente acham que o caso-a-caso é a melhor maneira de definir parâmetros para as APPs (provavelmente imaginando que na maioria dos casos seria comprovada a necessidade de se ampliar os parâmetros estabelecidos na norma geral de caráter nacional), a grande maioria dos que defendem ferrenhamente essa idéia está simplesmente resguardando interesses econômicos imediatos de grandes proprietários de terra, ou de “empresas de consultoria” visto que neste caso, todos os proprietários e posseiros de terra seriam obrigados a contratar estudos para definição dos parâmetros de APPs em seus imóveis ou posses. O mais estranho é que alguns proprietários de terra e empresários, inclusive pequenos, talvez desavisados, incorporam essa tese do caso-a-caso, esquecendo-se de que o pagamento dessa conta recairá sobre eles.
Ressalta-se que, mesmo que cientificamente seja possível determinar caso-a-caso (em cada imóvel) os parâmetros e faixas para as APPs, isso é absolutamente inviável do ponto de vista prático, pois exigiria um número absurdo de profissionais envolvidos (especialistas em geologia, em solos, em biodiversidade, em genética, em botânica, em hidrologia etc.), para minimamente analisar todas as funções ambientais e atributos presentes no conceito destes espaços territoriais especialmente protegidos, conforme determina o Código Florestal de 1965 e o Artigo 225 da Constituição Federal.
Não se está aqui defendendo que estudos científicos não devam ou não possam ser realizados. Aliás, já existem fartos estudos de caso sobre o tema, feitos por diferentes pesquisadores e instituições, sendo que a absoluta maioria vem corroborando que os parâmetros seriam iguais ou superiores aos atualmente previstos na norma geral de caráter nacional, e não inferiores.
Outro aspecto fundamental nesta discussão diz respeito à universalidade e a segurança jurídica de qualquer norma legal. Criar parâmetros caso-a-caso geraria uma insegurança jurídica tremenda, pois pessoas de determinada microbacia poderiam, em condições iguais, ter parâmetros diversos em razão de estudos feitos por metodologias e profissionais diferentes. Além disso, estaria aberta a porta para uma verdadeira indústria de “consultorias” para determinar parâmetros de APPs, com a forte possibilidade de favorecimentos ou flexibilizações. Neste caso, por exemplo, alguém com mais recursos financeiros, poderia contratar um estudo “mais apurado”, portanto mais caro, e com isso ter parâmetros menores do que seu vizinho, por exemplo. Seria também a porta aberta ao caos jurídico, visto que a função ambiental das APPs abarca inúmeros parâmetros, para os quais abordagens técnico-cientificas distintas também podem ser aplicadas.
Qualquer norma para ser universal e eficiente, tem que ser clara, facilmente compreendida e aplicável por qualquer cidadão, seja ele operador da norma ou administrado. Neste sentido, os parâmetros métricos mínimos nacionais são pertinentes e necessários, visto que conciliam de forma coerente e razoável o caráter técnico/científico com as características diversas da realidade, inclusive regional.
Ademais, a boa técnica legislativa adota parâmetros numéricos precisos em muitas normas, não apenas para as normas ambientais, como: velocidade no trânsito, maioridade penal, tempo de serviço para aposentadoria, entre outros. Imaginem o guarda de trânsito ter que decidir no caso-a-caso, antes de aplicar uma autuação, se a velocidade de um determinado carro na curva é adequada em função da sua marca, modelo, sistema de freios, sistema de estabilizadores, inclinação da pista, textura do asfalto etc.
Pergunta-se: o valor de uma nascente d´água em Santa Catarina é menor do que o de uma nascente na Amazônia? A água em Santa Catarina é menos importante e menos vital do que no resto do Brasil? As nascentes e a água em pequenas propriedades são menos importantes e menos necessárias do que nas médias e grandes propriedades?
Os defensores da tese do caso-a-caso valem-se do exemplo do recém aprovado Código anti-Ambiental de Santa Catarina para defender seus interesses imediatistas. Com isso também subestimam a capacidade e a inteligência de boa parte da população brasileira. Vale lembrar que recente pesquisa Datafolha apontou que 94% dos brasileiros não concordam com mudanças nas leis ambientais e refutam qualquer aumento nos desmatamentos, mesmo que para ampliar a produção de alimentos. Ademais, a catástrofe de novembro de 2008 em Santa Catarina é a prova mais contundente de que as perdas de vidas humanas e os prejuízos econômicos foram fortemente ampliados em função do descumprimento do Código Florestal, nas cidades e na área rural.
Apenas para lembrar, nenhum grande rio nasce grande. Todos os grandes rios dependem de milhares de nascentes que formam pequenos cursos d’água, os quais vão se juntando até formarem rios do tamanho do rio Paraná, por exemplo, capazes de movimentar as turbinas de Itaipu, a maior hidrelétrica do Brasil.
Como vimos, os recursos hídricos adquirem importância estratégica não apenas para o abastecimento público da população das cidades e do campo e irrigação de lavouras agrícolas, mas também para a política energética, sendo, portanto, de interesse nacional proteger as nascentes e corpos d´água. Tal fato, por si só, já justifica a existência de norma geral de caráter nacional definindo as faixas e parâmetros mínimos a serem observados na proteção ou recuperação das APPs. No entanto, é igualmente estratégico e de interesse nacional e global, conservar a biodiversidade e combater e mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
Isso tudo não quer dizer que os poderes públicos estaduais e municipais não possam ou não devam estabelecer parâmetros de proteção ou restrições de uso e ocupação adicionais àquelas previstas na norma geral de caráter nacional, sempre que peculiaridades locais assim o indicarem. As tragédias observadas em Santa Catarina, que infelizmente já são freqüentes em diversas outras regiões do país, apontam que a proteção conferida pelas APPs é de extrema importância e relevância.
No entanto, o que se tem assistido é uma verdadeira guerra pela eliminação da necessária proteção legal das APPs e RL, promovida por uma minoria com interesses econômicos imediatistas, inclusive utilizando-se de informações distorcidas e até falsas, tentando confundir a opinião pública.
Por fim, não se trata de defender a tese de que o Código Florestal é perfeito e que não possa merecer eventuais ajustes. No entanto, estes eventuais ajustes pontuais, se realizados, não devem, em hipótese alguma, modificar os conceitos fundamentais das APPs e RL e nem reduzir suas faixas e percentuais, sob pena de graves prejuízos às políticas estratégicas nacionais, ao interesse público e ao bem estar de todos os brasileiros.
O artigo em sua íntegra pode ser acessado no anexo. Confira também em anexo o parecer elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente sobre o Código Ambiental de SC.