Biodiversidade no centro do diálogo
A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) adotada em 1992 visa promover sociedades em harmonia com a natureza e, para tanto, possui três objetivos: o de conservar a biodiversidade, o de promover o uso sustentável dos componentes da biodiversidade, e o de repartir justa e equitativamente os benefícios oriundos do uso dos recursos genéticos e dos conhecimentos tradicionais associados. Desde lá, o Brasil seguiu o caminho da internalização dos compromissos assumidos no tratado internacional. Foi durante a 15ª reunião da Conferência das Partes (COP 15), que o Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, conhecido como GBF – Global Biodiversity Framework ou o Marco Global sobre Biodiversidadeem português – foi adotado. Este Marco Global estabelece um caminho ambicioso para alcançar a visão global de um mundo que viva em harmonia com a natureza até 2050. Entre os elementos-chave do Marco estão 4 objetivos para 2050 e 23 metas para 2030.
Rumando para a COP 16 na Colômbia que inicia este mês, o governo brasileiro conduziu no começo de 2024 uma ampla consulta pública sobre a Estratégia e Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade (EPANB), que uma vez lançadas, serão a base para os seus desdobramentos estaduais, as EPAEBs (Estratégias e Planos de Ação Estaduais para a Biodiversidade). A futura EPANB e os Planos de Ação Nacional para Conservação de Espécies Ameaçadas de Extinção (PAN) correspondem aos principais instrumentos de implementação.
Apesar do Brasil ser considerado o país com a maior biodiversidade do mundo, estima-se que seja detentor de apenas 10% do que temos. É necessário, sobretudo, avançar firmemente na descrição da fauna e flora do país. Dentre as estratégias de conservação da biodiversidade estão as unidades de conservação. No entanto, as propriedades privadas também devem ter um relevante papel na conservação da biodiversidade, em especial às associadas a atividades produtivas.
O Código Florestal, Lei de Proteção da Vegetação Nativa, por exemplo, estabelece a necessidade da proteção de remanescente ou a necessidade de restauração de porções de áreas em regime de reserva legal e/ou Áreas de Preservação Permanente (APP). Além disso, mecanismos financeiros previstos nesta lei visam incentivar a conservação de áreas excedentes através de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e a geração de Cotas de Reserva Ambiental sobre o qual um mercado pode ser estabelecido para apoiar quem quer compensar suas áreas de reserva legal fora dos limites da propriedade. Estes mecanismos financeiros, que carecem de regulamentação ampla, podem ser um grande passo no apoio à conservação da biodiversidade.
No contexto das 23 metas da EPANB, torna-se central a meta 15, considerando o papel das propriedades privadas que ocupam grandes extensões de terras. Essa meta visa promover atividades empresariais sustentáveis em relação à biodiversidade. Mas como parametrizar e quantificar a biodiversidade para alimentar as 23 metas? Biodiversidade é um termo que traz em si muita complexidade de componentes, formas de medir e reportar. Desde uma perspectiva de análise multivariada, pode-se definir algumas métricas que vão responder por grande parte da equação, mas quais são estas métricas e quem as define? Para quem? Muitas organizações e pessoas estão se debruçando sobre as métricas, como a TNFD (Taskforce on Nature-related Financial Disclosures), GRI (Global Reporting Initiative), Carbon Disclosure Project (CDP), o Índice Dow Jones de Sustentabilidade, o novo procedimento de certificação de serviços ecossistêmicos do FSC, e o Instituto Life sem, contudo, haver um consenso entre as diferentes partes interessadas e afetadas sobre a adequação destes mecanismos.
Biodiversidade no contexto do setor florestal
Do ponto de vista do setor florestal, a biodiversidade não está contida nos limites de uma propriedade rural, e cada vez mais a abordagem de paisagem é adotada em planejamento de ações de conservação e produção. Isto porque a biodiversidade importa não apenas para ambientalista, mas cada vez se torna mais clara a importância da biodiversidade para os negócios, em especial no cenário de mudanças climáticas onde o termo resiliência climática deve ser incorporado em todas as estratégias.
Muitas empresas, em especial as de grande porte, já estão mobilizando esforços para quantificar e reportar sua atuação em biodiversidade. Empresas do setor de plantações de árvores têm adotado medidas para reportar seus avanços nas métricas de biodiversidade, inclusive promovendo o debate sobre o tema no âmbito de iniciativas e organizações da sociedade civil.
No caso do setor de manejo de florestas nativas, além dos inventários florestais periódicos, os monitoramentos de fauna fazem parte da rotina das empresas que atuam no setor de forma responsável. O manejo florestal, diferente do desmatamento ou corte seletivo, é baseado na retirada de madeira deixando árvores da mesma espécie como porta sementes, e com cuidados na operação para não danificar árvores mais jovens cuja parte entrará em ciclos futuros de manejo ou não serão manejadas justamente para permanecer no ecossistema, contribuindo para a biodiversidade outras espécies, não só as de árvores.
Créditos de biodiversidade e outros mecanismos e olhares
O mercado de créditos de biodiversidade ainda está em uma fase inicial de desenvolvimento. Enquanto alguns especialistas entendem que ele é um instrumento conveniente capaz de gerar resultados positivos, principalmente no contexto da década da restauração dos ecossistemas da ONU, outros opõem-se ao mercado de compensações e créditos de biodiversidade.
Investidores e setor financeiro estão buscando direcionar seus recursos para projetos com menos riscos, e um dos critérios é o desempenho nas métricas de biodiversidade além de investimentos em projetos que promovem a sustentabilidade, contribuindo significativamente para as iniciativas de Governança Ambiental, Social e Corporativa, a famosa sigla ESG. Isso impacta na captação de recursos para alavancar investimentos, como por exemplo através dos chamados Green Bonds, os títulos verdes.
Futuras declarações positivas sobre biodiversidade realizadas com credibilidade e dados robustos não só poderiam demonstrar o cumprimento de metas internas, de investidores e clientes, mas também melhor posicionar o Brasil no contexto global. No entanto, sabe-se que ainda existe uma falta de uniformidade para apontar as métricas relacionadas aos mercados. Afinal, enquanto os créditos de biodiversidade podem ser medidos conforme a realidade da região onde serão implantados e conduzidos, o mercado de carbono, por exemplo, considera um valor padrão frente a uma tonelada de carbono. Este aspecto reforça a importância da transparência do segmento com responsabilização, boa governança e garantias sociais para que o mercado continue se desenvolvendo.
Desafios
Há que se considerar que, de acordo com o Fórum Econômico Mundial, ainda que a governança desses mercados seja eficaz e esteja avançando, a procura poderá atingir apenas US$ 2 bilhões por ano, ou seja, 1% do financiamento total necessário para cumprir as metas do Marco Global para 2050. Mas para além de uma visão utilitarista da biodiversidade, as discussões também devem considerar seu valor intrínseco, o componente social, cultural e espiritual atrelado à biodiversidade quando por simplificação as métricas podem deixar de lado.
A correlação entre biodiversidade e saúde, biodiversidade e mudanças climáticas e sobre as diferentes visões de valor da biodiversidade são temas que carecem maior aprofundamento, e estão na agenda da COP 16 na Colômbia. Mitigar as mudanças climáticas e enfrentar as causas raiz da perda da biodiversidade é fundamental para frear esta perda, e para isso urge a integração dessas agendas no nível global. Jim Skea, presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) disse em evento recente do Instituto de Meio Ambiente de Estocolmo que a redução da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos passa pela mudança nos padrões de consumo.
Aqui no Brasil, o tema vai ganhar ainda mais espaço considerando a posição estratégica do Brasil no cenário global, tanto na conservação quanto no uso responsável de seus recursos naturais. A COP 16 deverá trazer avanços na definição de indicadores para as metas de biodiversidade, apoiando a implementação do Marco Global. A definição de como o monitoramento dos avanços será realizado é fundamental, aqui reside a importância dos indicadores, que serão a base dos relatórios de progresso e deverão trazer com transparência os riscos e impactos sobre a biodiversidade. O nível de transparência dos relatórios e a forma de monitoramento também são pontos a serem discutidos, e sobre se haverá meios de verificação de autodeclarações.
Apenas seis anos nos separam de 2030, onde se visa realizar as 23 metas definidas no Marco Global. Espera-se o lançamento da EPANB no marco da COP 16, e para que o Brasil implemente seu ambicioso plano a união de setores e distintas partes interessadas será fundamental. Ainda muito se discute sobre a como quantificar as metas estabelecidas e esperamos avançar neste entendimento após o lançamento da EPANB brasileira.
Neste cenário complexo e extremamente relevante, o diálogo será o pilar central para chegarmos em 2030 com as metas cumpridas. Isso significa que a ampla participação da sociedade civil, institutos de ensino e pesquisa, povos indígenas e comunidades tradicionais incluindo mulheres e jovens, além das empresas que reportam seus impactos tenham uma base comum de entendimento sobre riscos e impactos sobre a biodiversidade.
Independente do porte, a consideração da importância da biodiversidade no contexto das mudanças climáticas pode impulsionar que cada vez mais organizações atuem na mensuração do impacto dos seus negócios e cadeia produtiva na biodiversidade, adotando medidas efetivas para reduzir impactos negativos e potencializar os positivos. Para discutir esses e outros desafios e oportunidades da agenda da biodiversidade, dia 12 de novembro o Diálogo Florestal vai realizar um webinar com a presença de representantes do governo, sociedade civil, setor produtivo, academia e povos indígenas. Em breve mais informações nas nossas redes sociais.
Autora: Fernanda Rodrigues | Eng. Florestal, MsC. em Economia e Política Florestal | Coordenadora executiva nacional do Diálogo Florestal
Crédito da foto em destaque: D’lano Sathler.